Repercussão das culturas de rebeldia e juventude no Brasil

O presente texto tem por objetivo apresentar um momento da história do Brasil que foi marcado pelas grandes mudanças advindas do exterior. A década de 60 foi marcada mundialmente pela forte presença da atuação jovem no universo cultural que expandiu suas influências aos meios políticos e sociais. No Brasil, é nesse período que grandes mudanças nas estruturas sociais e políticas germinam. A chegada dos militares ao poder e o movimento tropicalista, assim como diversos outros movimentos musicais, florescem um novo período de nossa história marcado por grandes transformações.
Utilizou-se nessa análise, trechos do desfile de três escolas de samba paulistanas. A partir da letra dos sambas de enredo das agremiações propõe-se partir para uma breve reflexão sobre o período, expondo como a cultura brasileira representa (ou reproduz) atualmente o pós 68 no Brasil.

SOB A LUZ DO CRIADOR/ VI UM FUTURO PROMISSOR/ PRA ESTA CIDADE/ E EU, MÁRIO DE ANDRADE, ME APAIXONEI.

Os primeiros versos do samba-enredo de 2002 do GRCSES Águia de Ouro revelam o tema escolhido para o desfile do mesmo ano. O desfile da escola fez uma homenagem à grandeza da cidade de São Paulo e, segundo o próprio enredo, ao maior intelectual brasileiro do século XX. Foi justamente essa grandeza de São Paulo que Mário de Andrade tanto idolatrou em sua vida. Para o autor, São Paulo era o símbolo da mistura de culturas que despertaria num futuro a gigante máquina brasileira.

Muito mais que uma simples máquina, a cidade de São Paulo ao longo do tempo se transformou no verdadeiro encontro de culturas; palco de inúmeras manifestações culturais protagonizadas por jovens, de certa forma rebeldes, buscando alcançar vários objetivos, mas acima de tudo o ideal de liberdade(1). A expressão de Mário de Andrade em seu conjunto de obras permite que o intelectual seja associado ao movimento antropofágico(2), que se concretizou em digerir a cultura estrangeira incorporando-a a arte nacional, de forma a constituir uma cultura nacional inovadora, cuja identidade fosse a não-identidade(3).

Ainda sobre São Paulo, o samba afirma:

FESTEIRA/ TUA NOITE É PIONEIRA/ DA TROPICÁLIA A BOSSA NOVA E O ROCK NACIONAL/ TEM GENTE BOA, OLHA CINDERELA NEGRA NA TERRA DA GAROA.

Esses últimos versos da obra nos mostram que São Paulo se transformou na fantástica metrópole que Andrade previu. A atual São Paulo das tribos que a globalização acelera, multiplica e transforma com a massificação cultural dos jovens, foi, nos fins da década de 60 e durante a década de 70, um dos principais palcos de apresentação do movimento tropicalista brasileiro.

O tropicalismo surgiu no Brasil, nos anos de 1967/1968, liderado por um grupo de jovens cantores e compositores que desejavam inovar a cultura brasileira incorporando elementos culturais de vanguarda erudita e as famosas culturas de massa. Para os artistas tropicalistas era plenamente possível unir o erudito ao popular. Já com a ditadura militar no Brasil e a entrada maciça dos movimentos culturais exportados principalmente por Estados Unidos e países da Europa Ocidental, os tropicalistas procuraram incorporar os elementos culturais estrangeiros, misturando-os aos já conhecidos traços típicos da música brasileira. (Isso nos remete ao antropofagismo apresentado pelos modernistas na semana de 22)

Alguns elementos da cultura jovem mundial, como por exemplo, a guitarra elétrica, blues, rock e psicodelia foram introduzidos na notável manifestação cultural brasileira com êxito tendo por conseqüência a modernização da música e da própria cultura nacional(4). Os tropicalistas propunham a internacionalização da cultura sem esquecer da desigualdade social e do autoritarismo político, imprimindo novas feições estéticas.

Segundo Rogério Duarte, em “Tropicália – 20 anos”, o tropicalismo não foi um movimento, mas um momento de um movimento que começou muito antes(5). E começara com a Bossa Nova. Os artistas da tropicália misturaram os caracteres da Bossa Nova com o samba, o rock, a batida clássica, a rumba, o baião e o bolero. Duarte também afirma que Glauber Rocha, Oscar Niemeyer, Lina Bo Bardi e Zé Celso, com seu Teatro Oficina, foram artistas considerados do movimento tropicalista.

O autor é enfático ao revelar que o Tropicalismo se diferencia fundamentalmente da Semana de Arte Moderna por ser algo sem nenhuma programação. Para ele, a Tropicália nasceu do experimento dos jovens dos fins década de 60 e contagiou todos os elementos da sociedade da época, como a arquitetura, a moda e a literatura e não pode ser compreendido por nenhum dos movimentos da época, nem pela esquerda, nem pela direita, pois não foi compreendida sua identidade e sua idéia de totalidade(6). Totalidade essa que pode ser entendida como abraçar a cultura estrangeira produzida pelos jovens das nações européias e estadunidense, inflamando o movimento jovem no Brasil. Um movimento de rompimento com a alta cultura abordando a cultura de massa e digerindo e incorporando a cultura exportada por aqueles países.

Alguns dos protagonistas do movimento tropicalista são bastante conhecidos. Caetano Veloso e Gilberto Gil são considerados uns dos artistas de maior expressão na época. Foi nos festivais da TV RECORD de São Paulo em que se apresentaram pela primeira vez, abrindo caminho para uma manifestação que fincou raízes na história da cultura brasileira(7).



A ARTE ENTRA EM CENA, O RISO E O CINEMA

Nesse verso do samba-enredo de 2000 da Sociedade Rosas de Ouro, os compositores destacam as áreas influenciadas pelo tropicalismo. O movimento que começou como uma espécie de rebeldia pacífica dos jovens acabou influenciando e perfazendo os diversos elementos culturais da sociedade brasileira. O teatro, por exemplo, ficou, segundo o novelista e dramaturgo Sílvio de Abreu, marcado pelas chanchadas e, posteriormente, neochanchadas que traziam o riso de uma forma inovadora, deixando um pouco mais de lado o excesso dramático seguido no teatro europeu(8). No cinema, a grande manifestação veio com Gláuber Rocha, a partir de “Deus e o Diabo na Terra do Sol” e “Terra em Transe”, que determinaram um novo impulso criativo na composição das letras musicais. Expressivos setores da juventude se interessaram pelas técnicas de corte, justaposição, uso de fragmentos e efeitos de flashback que foram incorporados promovendo a erupção do Cinema Novo brasileiro. Entre os fundadores desse cinema estão: Joaquim Pedro de Andrade, Paulo César Saraceni e Walter Lima Jr.

E QUEM SERÁ, ESSE JOÃO?/ SEU VIOLÃO É BOSSA NOVA/ O ROCK’IN ROLL É LIBERDADE

Estes versos, também da obra de 2000 da Rosas de Ouro, retratam o momento final do predomínio da Bossa Nova em nossa música. É o início da década de 60, com João Gilberto, conhecido por estar acompanhado de seu violão, instrumento preferido pelo público. Em pouco tempo, a Bossa Nova se tornou a música de exportação brasileira. No entanto, devido às fortes influências estrangeiras, despertou críticas dos nacionalistas e da juventude, principalmente a filiada a UNE, que colocavam em dúvida a autenticidade de seu samba(9).

É também na década de 60 que os estudantes da UNE (União Nacional dos Estudantes) formaram o CPC (Centro Popular de Cultura). O objetivo era conscientizar todas as classes brasileiras das ações políticas através de qualquer tipo de manifesto cultural. Fosse na música, ou fosse no teatro e no cinema, essa juventude de composição da UNE acreditava que esse era um passo necessário para os trabalhadores do Brasil, de forma geral, e das classes médias, consideradas alienadas politicamente dos destinos que a política brasileira seguiria. Paulo Sérgio do Carmo, autor de “Culturas da Rebeldia - A Juventude em Questão” afirma que a UNE era formada por uma corrente jovem extremamente nacionalista que não aceitava a Bossa Nova por descaracterizar o verdadeiro samba manifestante da cultura brasileira(10).

Em 1967 e 1968, com os famosos Festivais da TV RECORD no seu auge, a Bossa Nova cede lugar à Tropicália. A partir desses dois primeiros anos de grande sucesso, mesmo com a radicalização da ditadura militar no Brasil, o tropicalismo passou a conquistar uma legião bastante extensa de jovens de todas as classes sociais. Do erudito ao popular, a sociedade brasileira das décadas de 70 e 80 do século XX ficaram profundamente marcadas pelas novas tendências apresentadas pelo movimento. Como por exemplo, as vestimentas hippies assumidas pelos artistas e incorporadas na moda por toda a nação;

Segue o refrão:

EU SOU A ROSAS/ SOU MUITO MAIS/ EU QUERO PAZ E AMOR




Nestes versos do samba-enredo de 2000 do GRCSES Acadêmicos do Tucuruvi percebe-se que o enredo retratado pela escola referia-se às décadas de 60 e 70:

FORAM MOMENTOS/ QUE NÃO PODEMOS ESQUECER/ A LIBERDADE DE UM POVO CERCEADA/ A DITADURA SE INSTALAVA NO PODER/ MAS LEMBRAMOS COM SAUDADES/ DOS MOVIMENTOS MUSICAIS/ A BOSSA NOVA, A JOVEM GUARDA/ A TROPICÁLIA/ E OS GRANDES FESTIVAIS

A escola abordou nesse ano o contexto que levou os militares ao poder, com o apoio do governo estadunidense. É ponto para análise depreender deste samba que os três movimentos musicais apresentados possuíam em suas composições, muitas vezes roupagens políticas. No caso, especificamente, da tropicália temos mais uma vez Caetano Veloso e Gilberto Gil como os representantes mais assíduos de composições, por mais que muitas delas tenham sido censuradas pela ditadura e, outras, disfarçadas pelos próprios artistas para conseguirem a exposição ao publico.

Em dezembro de 1968, com o quinto Ato Institucional (AI-5) posto em vigor, tanto Caetano, quanto Gil foram presos pela ditadura militar devido à censura. A repercussão que o movimento tropicalista ganhava fez com que os generais levassem ambos ao exílio. Paulo Sérgio do Carmo, em seu livro, “Culturas da Rebeldia” relata que Caetano não esperava determinada ordem dos militares uma vez que sua música era extremamente criticada pela juventude nacionalista, sempre associada à esquerda política no Brasil(11).

Os seguintes versos, também da Acadêmicos do Tucuruvi, continuam a retratar a década de 70:

DEMOCRACIA/ O POVO IA ÀS RUAS PRA REINVINDICAR/ PELA LIBERDADE E AMPLA ANISTIA/ CLAMANDO POR DIRETAS JÁ

Em “Noventa Milhões em Ação, na Tristeza e na Felicidade”, enredo do grêmio em 2000, não foi só a juventude politizada durante a ditadura militar que aderiu ou se opôs ao tropicalismo. Jovens, adultos e pessoas da terceira idade, influenciadas pelo sucesso e pela repercussão das canções tropicalistas incorporaram muitos traços desse movimento, iniciado pelos jovens de 70.

Para Jerônimo Guimarães, enredista do Grêmio Tucuruvi em 2000, o Brasil vivia um momento único em sua história, com a juventude nacionalista de esquerda crescendo assustadoramente, a Revolução Cubana e os conflitos na América latina aliados ao peso do mundo bipolarizado (por Estados Unidos e União Soviética), fizeram com que os Estados Unidos da América apoiassem um golpe dado pela direita política para controlar o poder e barrar o “avanço comunista” sobre a América. Segue o refrão do samba:

BRUXA TÁ SOLTA TIO SAM QUER MANDAR/ O CHEIRO DE GOLPE PAIRAVA NO AR/ E PRA RECORDAR, NÓS VAMOS CURTIR/ NA GINGA DO TUCURUVI




A análise que se faz dessa juventude representada pela tropicália mostra que, apesar de seu afastamento com mundo político, ela também sofre as conseqüências dele. A ditadura instaura sobre essa juventude o silêncio da ausência da liberdade, inclusive a liberdade individual, sob a pena de se perder a própria vida. É a partir desse momento que a luta pela liberdade passa a dominar os palcos da opinião pública. Movimentos da música brasileira que, claramente, são vistos como diferentes, com a ditadura, vão representar uma busca em comum para a sociedade brasileira. Os ídolos jovens são afastados dos palcos, e a opinião pública passa a criticar, ironicamente, o regime instaurado com a colaboração, anterior, dessa mesma opinião. O regime autoritário aproxima as vertentes antes separadas. A partir daí, cria-se um paradoxo: como a juventude atual se relaciona com a opinião pública? Talvez, essa relação seja um dos principais aprendizados que se deve ter desse momento. A tropicália, como movimento amplamente a-politizado, vai ser contestada pela própria juventude, e vai também sofrer as conseqüências do AI-5. A partir daí, a juventude pró-tropicália também nota o temor da ditadura. A união se dá nesse ponto: a rebeldia unificada pela liberdade, novamente.


NOTAS

(1) Enredo 2002, GRCSES Águia de Ouro
(2) Elemento cultural manifestado com notoriedade durante as primeiras décadas do século XX
(3)PAIANO, Enor. Tropicalismo: Bananas ao Vento no Coração do Brasil. São Paulo: Scipione, 1996
(4) Revista Acadêmica UOL – Edição TROPICÁLIA
(5) DUARTE, Rogério; Tropicália – 20 Anos; SESC, 1987
(6) DUARTE Rogério; Tropicália – 20 Anos; SESC, 1987
(7) Revista Acadêmica UOL – Edição TROPICÁLIA
(8) LEDESMA, Vilmar – Sílvio de Abreu, um homem de sorte
(9) CARMO, Paulo Sério do; Culturas da Rebeldia – A juventude em questão
(10) CARMO, Paulo Sério do. Idem.
(11) CARMO, Paulo Sério do; Ibidem.